domingo, janeiro 15, 2006

Tarde de domingo

A vizinha está sentada no sofá, coberta com uma manta, enquanto o céu cor cinza da capital tenta decidir se chove ou não chove.
Uma das pontas da manta não consegue tapar os dedos do pé, branco e pequeno, e a vizinha encolhe as pernas um pouco, com frio. Sobre o regaço, um livro: "Le Città Invisibili", de Italo Calvino. A vizinha não lê; re-lê esse livro que a acompanhou numa viagem de autocar há muitos anos, quando era mais nova e mais ousada e não tinha medo de amar nem de sofrer.
Enquanto lê, pode sentir o calor do sol no rosto através da janela do autocar, a luz dourada nas páginas e a impaciência dificilmente contida do encontro.
Agora sim, está a chover.
A vizinha levanta-se, abre as cortinas para ver a chuva cair e volta a fazer-se um ninho no sofá, bem tapada e entregue às histórias de mr. Calvino.
A fábula de Armilla é sua preferida, talvez porque foi a primeira que leu, quando era criança. Casualmente, Armilla é uma cidade real da Espanha, mas a vizinha nunca esteve lá e acha improvável que seja a mesma Armilla do conto.
Calvino diz que Armilla é uma cidade incompleta, a meio criar, uma floresta de torneiras, chaves, canos, banheiras, pias e mais canos, abandonada antes de ser terminada quem sabe por que motivo.
Pareceria que ninguém mora lá, principalmente porque não há casas, mas não é assim... Contam os curiosos que às vezes, nessa primeira hora da manhã, quando o sol começa a estender seus olhos pelo mundo, pode ver-se um ombro branquíssimo, a ponta de uns dedos finos no borde duma pia, um seio de mármore... Contam os curiosos que se ouvem risos cristalinos, mulheres a cantarolar músicas desconhecidas e tentadoras, enquanto torneiras se abrem sozinhas e banheiras se enchem d'água . E se rumoreja que a cidade foi tomada pelas ninfas, que adoram a água e consideram sua essa montanha de metal e cerâmica.
E a vizinha sorri e se pergunta se é possível sentir saudades do que nunca conheceu, se sua pele é suficientemente branca e macia como para virar uma ninfa e fugir para uma cidade deserta onde brincar entre as gotas e salpicar o mundo, molhada de alegria, nua e viva.