Lado oculto

Escondida trás os grandes óculos escuros, que qualquer beta invejaria, a vizinha lê enquanto o comboio a leva para uma cidadezinha feia onde deve trabalhar esta tarde.
A vizinha só se esconde de si própria, só tem medo de ela. Se tivesse medo do homem sentado no banco diante dela, esse que fixa os olhos no seu pescoço, abotoaria os três botões superiores da camisa. Se tivesse medo do terrorismo, não viajaria mais de comboio. Se tivesse medo de morrer de cancro, faria mais desporto e comeria mais legumes.
Mas não é bem isso. É o desejo de deixar bem longe o ódio, um ódio que ainda sente, que não conseguiu apagar depois de muitos anos, ela que sempre deixou as pessoas saírem e entrarem da sua vida sem pedir explicações, ela que nunca sentiu ciúmes de ninguém e que não consegue tirar da sua alma esse ódio que a apodrece lentamente.
E tem medo porque houve uma altura em que o viu e sentiu aquela vontade incontenível de apertar o acelerador, o coração a bater feito um tambor e um sorriso sádico nos lábios.